Dignidade, humanização e a automação através de Inteligência Artificial (IA)

5 de junho de 2025
Escrito por Henrique Duarte

Automatizar o trabalho recorrendo a ferramentas de IA acicata o debate entre a procura de eficiência, a redução de custos e a humanização. Mudar os processos de trabalho recorrendo a máquinas não é uma novidade desde o dealbar das primeiras revoluções industriais e agrícolas. A singularidade deste tipo de automação é de que pela primeira vez as pessoas competem com as máquinas no que as define como humanos: a capacidade de pensar autonomamente, de mimetizarem aspetos simbólicos e por consequência de intuírem e imaginar.

As resistências anteriores surgiram da competição por recursos, já a automação atual acresce desafios no que toca à influências das máquinas sobre o pensamento e sobre as suas interações com humanos. Podemos interrogar-nos se os processos de automatização através da IA poderão ser eficazes e sustentáveis sem ter consciência desta sua dimensão simbólica e ética? Será possível automatizar sem desumanizar? Podemos interrogar-nos ainda sobre as diferenças que ocorrem entre as fases de planeamento da introdução de sistemas automatizados e as fases de implementação.

Simbolismo, Reconhecimento e Dignidade nas Relações de Trabalho

A dignidade humana não é apenas o respeito pelos direitos legais ou condições materiais. Ela é também alimentada por processos simbólicos: a forma como somos nomeados, escutados, valorizados e reconhecidos. A linguagem é o primeiro instrumento deste reconhecimento. Num ambiente organizacional, o ato de dizer "obrigado", de ouvir uma preocupação, de oferecer um feedback presencial, não são apenas formalidades, são atos simbólicos que sustentam a identidade profissional e pessoal.

As interações mediadas por IA, como chatbots, algoritmos de avaliação ou sistemas automáticos de triagem, tendem a esvaziar essa dimensão simbólica. A "mímica" de interação humana produzida por chatbots pode gerar uma relação ilusória e desrespeitosa, na medida em que simula empatia sem capacidade real de compreensão. Também a falta de reciprocidade simbólica pode minar o sentido de reconhecimento, de valor próprio do trabalhador e do sentido que pode extrair do seu trabalho. Existe a ameaça de uma realidade socialmente construída e partilhada ser substituída por uma realidade artificialmente recreada através de algoritmos.

Desumanização Silenciosa: Ameaças Emergentes nos Sistemas Automatizados

A desumanização no local de trabalho nem sempre se apresenta como abuso ou agressão direta. Muitas vezes, manifesta-se de forma silenciosa: quando um trabalhador é avaliado apenas por indicadores quantitativos; quando um processo de seleção é conduzido por algoritmos sem contacto humano; quando a comunicação é reduzida a interações com softwares indiferenciados. A simplificação excessiva da cognição humana em modelos de IA não só é cientificamente redutora, como eticamente perigosa. Ao tratar o humano como sistema computacional replicável, perde-se a riqueza da linguagem simbólica, das ambivalências, dos significados implícitos, dos afetos e das relações. Este esvaziamento simbólico é, em si mesmo, uma forma de desumanização. A pessoa deixa de se reconhecer a ela própria enquanto humana, pode mimetizar-se aos algoritmos fornecidos pela automação, e por consequência agir como tal.

Desafios para os RH em Empresas que Estão a Planear Automatizar

As empresas que se encontram na fase de planear a introdução da IA têm uma oportunidade singular: desenhar os sistemas com base em princípios de humanização e respeito. No entanto, muitas vezes, a decisão é guiada por argumentos exclusivamente financeiros ou de benchmarking tecnológico. Nestes contextos, os RH enfrentam o desafio de colocar em cima da mesa questões simbólicas e éticas que muitas vezes são vistas como "intangíveis". Os sistemas de automação devem ser concebidos integrando sempre a interação humana e a componente automática; dever ser apenas concebidos como suporte de decisão, e não como eles próprios decisores; devem permitir ao utilizador saber que está a interagir com um algoritmo, e poder escolher não o fazer, ou questionar os resultados dessa interação.  Seymour et al. (2022) sugerem que o princípio do respeito pela Pessoa deve orientar o desenho dos sistemas de IA. Isso significa planear os sistemas reconhecendo o valor da pessoa nas dinâmicas das Organizações e não apenas como um meio para atingir indicadores de eficiência. Reconhecer a equidade do ganho e não a mera acumulação dos proveitos. Os sistemas planeados de forma egoísta, correm o risco de reações naturalmente dominadoras, tão bem ilustrado pelo HAL 9000 em 2001 Odisseia no Espaço.

Desafios para os RH em Empresas que estão a Implementar Automatização

As empresas que já estão a implementar IA enfrentam desafios distintos. Aqui, não se trata apenas de prevenir riscos, mas de avaliar dinâmicas que possam ser tidas como desumanizantes. Muitos trabalhadores relatam sentimentos de isolamento, desconfiança e desmotivação quando se veem inseridos num sistema onde a interação humana é substituída por processos algorítmicos, onde as emoções esbarram numa parede digital. Os RH devem escutar estes sinais e promover um processo de re-humanização. Isto pode passar pela explicitação dos procedimentos que utilizaram AI, e possibilidade de os questionar, pela reintrodução de momentos presenciais, pela criação de espaços de escuta ativa, de interação social e pela participação dos trabalhadores na avaliação dos sistemas tecnológicos implementados.

Caminhos para uma Integração Simbólica e Ética da IA em RH

O futuro da IA em RH não depende apenas da evolução tecnológica, mas sobretudo da coragem ética e simbólica das lideranças, nomeadamente na criação de sistemas híbridos, onde a IA apoia decisões, mas não substitui o julgamento humano, especialmente em processos sensíveis; promover a transparência dos critérios utilizados pelos algoritmos; consagrar o direito à interação humana (tal como proposto pelo Institute for Ethics in AI - 2024), ou seja existir sempre a possibilidade de ser ouvido por um humano, especialmente em decisões que afetam profundamente a vida dos trabalhadores nas Organizações.

Automatizar não é, em si, desumanizar. Mas automatizar sem consciência simbólica e ética conduz a formas subtis (ou evidentes) de desumanização. Nesta edição do People Engagement Survey 2025, gestores de RH, e outros gestores são convidados a analisar os possíveis efeitos da automação, pelas perceções de apoio e resistência à IA, de como estas se associam às próprias perceções de dignidade, ao seu envolvimento para com as organizações, aos sentimentos de isolamento, à demissão interna, à redução da iniciativa. Gestores terão que refletir sobre a sustentabilidade da automação, e assegurar que a procura de eficiência não se opõe, nem se pode sobrepor à dignidade, ou levar a que as pessoas se desumanizam a si próprias, com as consequências que daí derivam.

Veja os comentários do Professor Henrique Duarte, sobre que temática antevê virem a impactar o nível de envolvimento e comprometimento das pessoas com as organizações:


Institute for Ethics in AI. (2024). A right to a human-to-human interaction. University of Oxford. Retrieved from https://www.oxford-aiethics.ox.ac.uk/blog/right-human-human-interaction

Seymour, W., Van Kleek, M., Binns, R., & Murray Rust, D. (2022). Respect as a Lens for the Design of AI Systems. In AIES 2022 - Proceedings of the 2022 AAAI/ACM Conference on AI, Ethics, and Society (pp. 641-652). (AIES 2022 - Proceedings of the 2022 AAAI/ACM Conference on AI, Ethics, and Society). ACM. https://doi.org/10.1145/3514094.3534186

Escrito por

Henrique Duarte

Professor associado com agregação no Iscte Executive Education e Diretor do Departamento de Recursos Humanos e Comportamento Organizacional. Saiba mais
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